Um fenómeno recente na investigação do Novo Testamento é o envolvimento de estudiosos judeus. Eles desempenham a tarefa vital de corrigir mal-entendidos cristãos, distorções, estereótipos e calúnias, com o objectivo de recuperar os vários contextos judeus de Jesus, Paulo, e o movimento cristão primitivo. Este é um desenvolvimento bem-vindo na dolorosa história das relações judaico-cristãs.
Existe, contudo, entre os cristãos, um perigo de uma espécie de nostalgia de “raízes judaicas” – uma expectativa de que ao examinar de perto a mensagem original de Jesus, e a forma “autêntica” judaica do cristianismo, é possível contornar séculos de desconfiança e pior. As coisas não são assim tão simples. O cristianismo nasceu de uma dupla herança complexa: a mensagem cristã espalhou-se rapidamente pelo mundo de língua grega, e os seus adeptos foram em breve maioritariamente gentios. As implicações disto são profundas e já reflectidas no Novo Testamento.
Os livros do Novo Testamento foram escritos antes de qualquer “separação dos caminhos” entre o judaísmo e o cristianismo. No primeiro século, era impossível distinguir entre o que era “judaico” e o que era “cristão”. O “Messias” começou como um conceito judeu, e os seguidores de Jesus interpretaram a sua vida, morte e ressurreição dentro do quadro fornecido pelas escrituras judaicas. Havia, no entanto, uma distinção reconhecida entre “judeu” e “gentio” – tão clara como a diferença entre masculino e feminino, ou escravo e livre (ver Gálatas 3:28).
O que agora chamamos “religião” estava então mais ligado aos costumes cívicos, etnia e cultura. Ser judeu era equivalente a ser grego, egípcio, ou sem sírio sobre o que se acreditava do que sobre que comunidade (e portanto a que deus) se pertencia. Paulo considerava-se um judeu e tinha orgulho nisso. Contudo, seguindo a sua experiência na estrada de Damasco, embarcou numa missão aos gentios: agora era o tempo, profetizado por Isaías, em que todas as nações iriam afluir a Jerusalém e adorar o Deus de Israel. Ele apelou aos pagãos para abandonarem os seus deuses nativos e seguirem o Messias do Deus judeu. Não havia necessidade, contudo, de se tornarem judeus – não havia necessidade de circuncisão; eles deveriam permanecer gentios.
Este processo, iniciado por Paulo, de apresentar ideias messiânicas judaicas a um público gentio – atribuindo significado mundial às tradições de uma determinada comunidade – não era simples. Foram criados todos os tipos de tensões, cujos resultados ainda estão entre nós. Tendo abandonado as suas vidas anteriores para adorarem o Deus de Israel, mas sem se tornarem judeus, onde é que os gentios de Paulo se converteram agora? Ficaram encalhados numa terra étnica de ninguém. E uma vez declaradas as escrituras judaicas como sendo de importância universal (transcultural), o que iria acontecer à narrativa judaica de uma relação comunitária única com o seu Deus nacional? A perspectiva de Paulo foi condicionada pela sua expectativa do regresso iminente de Cristo, deixando estas questões de identidade por resolver.
Mas uma relação complexa desenvolveu-se entre a teologia do Novo Testamento e a sua sociologia.
Na altura em que os Evangelhos foram escritos, os ensinamentos de Jesus estavam a ser retransmitidos em contextos dramaticamente diferentes da sua Galileia natal. Quando Jesus discutia com escribas e fariseus sobre, digamos, a observância do Shabbat, estes eram debates intra-judaicos. Todos concordavam sobre o significado do Shabat; as discordâncias diziam respeito à melhor forma de o honrar. Muitos leitores dos Evangelhos, contudo, eram gentios, para quem o Shabat era um costume estrangeiro, e que não tinham a certeza se eram obrigados a guardá-lo. Isto deu uma nova vantagem a tais disputas. O que quer que Jesus tenha pretendido com as suas parábolas, eles rapidamente adquiriram novos significados, muitas vezes reflectindo um movimento cristão em desacordo com a maioria dos judeus.
A teologia do Novo Testamento, mesmo a sua cristologia, é judaica. Ela representa um dos resultados da tremenda variedade dentro do Judaísmo do Segundo Templo. Mas uma relação complexa desenvolveu-se entre a teologia do Novo Testamento e a sua sociologia. Verificou-se que as suas ideias tinham mais tracção entre os gentios do que entre os judeus. Paulo já estava ciente das ironias – a sua imagem convoluta, horticulturalmente suspeita, do rebento de oliveira selvagem enxertado na oliveira cultivada (Romanos 11:17-24).
O subtexto para grande parte do Novo Testamento é a indiferença judaica em relação à mensagem cristã. Quando Mateus chama hipócritas aos fariseus (23:13), ou implica que Deus foi responsável pela destruição de Jerusalém (22:7), ou João tem Jesus a dizer “os judeus” que o seu pai é o diabo (8:44), a polémica difamatória é indicativa da situação difícil em que os cristãos se encontravam. Eles estavam convencidos de terem identificado o Messias, e desbloquearam a chave das escrituras judaicas, mas a comunidade judaica não reagiu. Os estudiosos judeus de hoje têm razão em mergulhar por baixo da retórica, corrigir os estereótipos, e reconstruir o ponto de vista judeu.
É intrigante ponderar as motivações dos primeiros cristãos gentílicos. Algo sobre as escrituras e tradições judaicas deve tê-los atraído, e Jesus Cristo abriu-lhes o caminho para que fizessem parte da história. Mas ao inserirem-se nessa história, eles mudaram-na. O Novo Testamento consiste em ideias judaicas apresentadas a um público cada vez mais gentio, tomadas numa direcção não reconhecida pela maioria dos judeus. E por essa falta de reconhecimento, vira-se contra eles.
As coisas eram mais fáceis quando judeus e gentios tinham cada um o(s) seu(s) deus(s). No Novo Testamento, vemos o início da luta entre judeus e cristãos sobre o mesmo Deus. Qual deveria ser o futuro do Deus de Abraão, Moisés, Isaías, e Jeremias? Quem sabia melhor como interpretar as escrituras? O Novo Testamento lido domingo a domingo nas igrejas não é um simples registo do Jesus judeu e do Paulo judeu. Testemunha o início da formação da identidade cristã – um processo complicado em que conceitos judeus foram apropriados por pessoas de fora. A relação entre o judaísmo e o cristianismo foi distorcida desde o início, e as complicações ainda hoje nos acompanham.
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